Parecer que defende terceirização de atividades prisionais ignora criação da Polícia Penal e decisões judiciais que já reconheceram ilegalidade do modelo.

Por Elisete Henriques - Sindisistema/RJ

Com parecer favorável do senador Marcio Bittar (PL-AC), a proposta altera a Lei de Execução Penal (7.210/1984) para incluir, na lista, contratação de terceirizados para apoio à movimentação interna dos presos, e ao monitoramento e rastreamento eletrônico dos apenados.

A Comissão de Segurança do Senado aprovou uma proposta que permite a terceirização de serviços de conservação, limpeza e manutenção nas prisões, além de autorizar empresas privadas a contratar monitores, auxiliares e supervisores para essas atividades. O projeto também inclui a possibilidade de monitoramento eletrônico de presos ser realizado por empresas privadas, em casos como saídas temporárias e regimes aberto ou semiaberto. O relator defende que essas funções são delegáveis ao setor privado, sem interferir nas atribuições exclusivas do Estado, como controle de rebeliões e transporte de presos. A proposta ainda será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Fonte: Congresso em Foco
https://www.congressoemfoco.com.br/noticia/114429/comissao-de-seguranca-aprova-terceirizacao-no-sistema-prisional


O parecer pode ser acessado na íntegra em: https://drive.google.com/file/d/1UUG3WuCcyljhJT-zP54O3bG7GJv4LvNk/view?usp=sharing

Mesmo após a Constituição Federal ter criado oficialmente as Polícias Penais como órgãos de segurança pública, um parecer em tramitação no Senado Federal reacende o debate sobre a privatização de atividades essenciais dentro dos presídios — ignorando não apenas a Emenda Constitucional nº 104/2019, mas também decisões judiciais que já condenaram Estados e empresas privadas pela execução dessas mesmas funções.
O parecer do senador Marcio Bittar ao Projeto de Lei nº 4.962/2025 (originário do PL nº 2.694, de 2015, de autoria da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a “realidade do Sistema Carcerário Brasileiro”) sustenta a ampliação da execução indireta de atividades desenvolvidas em unidades penais, incluindo apoio na movimentação interna de presos, monitoramento e a contratação de monitores privados para atuar dentro do sistema prisional.
A análise, no entanto, tem sido duramente criticada pela Federação Nacional Sindical dos Policiais Penais – FENASPPEN, por operar com um paradigma jurídico anterior a 2019, como se a Constituição não tivesse promovido uma ruptura estrutural no modelo de segurança dos estabelecimentos penais.
CONSTITUIÇÃO CRIOU A POLÍCIA PENAL, MAS PARECER DO SENADOR MARCIO BITTAR IGNORA
Promulgada em dezembro de 2019, a Emenda Constitucional nº 104 alterou profundamente o artigo 144 da Constituição ao criar as Polícias Penais federal, estaduais e distrital, conferindo-lhes competência exclusiva pela segurança dos estabelecimentos penais.
Com isso, atividades como custódia, vigilância, controle, escolta, movimentação interna de presos, monitoramento, passaram a ser, constitucionalmente, funções policiais típicas de Estado, exercidas por servidores públicos concursados, hierarquizados e submetidos a controle público direto.
Apesar desse marco constitucional, o parecer em tramitação não menciona a EC 104/2019, nem o art. 144, § 5º-A, da Constituição. Todas as atividades são analisadas sob a ótica da antiga redação da Lei de Execução Penal, classificadas como “serviços de apoio” ou “atividades administrativas”, abrindo caminho para sua terceirização.
 
“APOIO” QUE EXERCE PODER DE POLÍCIA
Um dos pontos mais controversos do parecer é a tentativa de tratar a movimentação interna de presos como atividade delegável. Para o relator, essa função não integraria o poder de polícia.
Na prática, e conforme reconhecimento de tribunais, a movimentação interna envolve controle físico do preso, vigilância armada, prevenção de fugas e rebeliões, uso potencial da força. Ou seja, trata-se do núcleo do poder de polícia penal, hoje constitucionalmente atribuído à Polícia Penal. Rebatizar essa função como “apoio” não altera sua natureza jurídica.
 
BAHIA: ESTADO E EMPRESAS CONDENADOS PELO MODELO DEFENDIDO NO PARECER DE BITTAR
A fragilidade do argumento do parecer fica ainda mais evidente diante de decisões judiciais já consolidadas. Um exemplo emblemático é o acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-BA), que condenou o Estado da Bahia e as empresas Reviver Administração Prisional Privada Ltda e Socializa Empreendimentos e Serviços de Manutenção Ltda ao pagamento milionário de indenização por dano moral coletivo.
No caso, ficou reconhecido que empresas privadas vinham realizando vigilância, revistando presos e visitantes, controlando acessos, utilizando instrumentos coercitivos, ou seja, exercendo poder de polícia, em flagrante violação à Constituição.
O acórdão é categórico ao afirmar que a EC 104/2019 encerrou qualquer dúvida sobre a natureza policial dessas atividades, classificando-as como indelegáveis. A decisão também destaca que a terceirização da custódia prisional constitui delegação ilícita da atividade finalística do Estado, com riscos não apenas aos direitos dos trabalhadores, mas à segurança pública como um todo.
 
STF: CRISE NÃO AUTORIZA PRIVATIZAÇÃO DA FORÇA ESTATAL
O parecer do Senado tenta amparar a ampliação da terceirização no chamado “estado de coisas inconstitucional” reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347 e em outros julgados. Contudo, o que se vê é uma inversão no argumento. O STF reconheceu a falência estrutural do sistema prisional para cobrar ação do Estado, não para autorizar a substituição de órgãos policiais por empresas privadas.
Em diversos precedentes, a Corte tem reiterado a indelegabilidade do poder de polícia, o monopólio estatal do uso legítimo da força, a impossibilidade de terceirizar atividades que envolvam coerção, vigilância e disciplina. Esses entendimentos foram reafirmados em julgamentos que discutiram terceirização no setor público e, mais recentemente, em ações envolvendo a gestão prisional em diferentes estados.
Reeditar um modelo já condenado é repetir o erro do passado que gerou o estado de coisas inconstitucional pela ausência do poder do Estado nas prisões. Se aprovado nos termos defendidos pelo parecer, o projeto reabre juridicamente um modelo que a própria Constituição tentou encerrar ao criar a Polícia Penal. Além do conflito constitucional, o avanço da terceirização expõe estados a novas ações judiciais, nulidade de contratos, condenações por danos coletivos, insegurança jurídica na execução penal.
Para a FENASPPEN, trata-se de uma tentativa de contornar a EC 104/2019 por via infraconstitucional, mantendo estruturas privadas paralelas dentro dos presídios e esvaziando uma carreira criada justamente para recuperar o controle público do cárcere.
 
DEBATE DEVE CHEGAR À CCJ
O projeto segue agora para análise da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A expectativa é que a constitucionalidade da proposta seja confrontada diretamente com o texto expresso da EC 104/2019, decisões do STF, e precedentes como o acórdão da Bahia. Caso avance sem ajustes, o tema tende a retornar ao Judiciário, num cenário já conhecido: leis aprovadas no Congresso sendo barradas por violarem a Constituição.