Por Rogério Grossi - Agente Penitenciário e Diretor de Base do Sifuspesp
Disse Maquiavel “São tão simples os homens e obedecem tanto às necessidades presentes que quem engana encontrará sempre alguém que se deixe enganar”.
Conheci Marielle em uma tarde quando me preparava para ir trabalhar. Juro que nem sonhava que essa pessoa existisse, mas desse momento em diante conheci Marielle e um monte de outras coisas e, vejam só como esse mundo é bem loco.
Noticiava, no minuto G1 daquela tarde que Marielle, vereadora do Rio de Janeiro, havia sido assassinada com dezenove tiros e que haviam protestos acontecendo em diversas partes do país. Em destaque para algumas capitais entre elas São Paulo, Salvador e o próprio Rio de Janeiro.
Sabe aquele momento que você sente que perdeu alguma parte da história? Como quem acabou de acordar no meio da aula com a professora jogando um giz na sua cabeça e fazendo uma pergunta que você não tem a mínima ideia do que se trata... Eu tava mais ou menos assim.
Lembrando que sou Agente Penitenciário e que, em decorrência da função, criei – assim como a maior parte dos companheiros de trabalho – uma blindagem para histórias tristes (é isso ou chapar) e o fato de a vereadora Marielle ter sido assassinada com tantos tiros não me comoveu naquele momento e então me atentei a outros fatos.
Já no trabalho percebi que não perdi apenas parte da aula, mas a disciplina inteira irmão. De relato em relato fui descobrindo que Marielle, a vereadora do PSOL assassinada, era namorada de Marcinho VP (esse eu conhecia bem, famoso traficante, chefe do tráfico, violento, cheio da grana) e que ela, por isso, defendia os traficantes da favela e que se posicionava politicamente contra a polícia militar que matava esses traficantes.
Olha só que mundo louco amigo. Uma mulher desse tipo causando tantos protestos de indignação por sua morte.
Mas, com todas essas informações e um pouco de debate com os colegas, foi facinho concluir que a vereadora havia sido assassinada por ninguém mais, ninguém menos que... Os próprios traficantes. Lógico.
Se você não entendeu nada, espera que vou explicar. Marielle era namorada de Marcinho VP, famoso traficante ligado ao Comando Vermelho. É sabido que está em curso uma guerra entre as facções criminosas no Rio e, por tanto, Mariellen foi assassinada por integrantes do PCC. Tipo na primeira guerra mundial quando mataram o príncipe do império austro-húngaro Francisco Ferdinando, sacou? Então!!!
Resolvido o caso, fim do plantão, vou embora satisfeito e ouvindo a FM local onde o locutor dava força a essa tese ratificando o veredicto. Até porque era um caso óbvio.
Só que não. Ao chegar em casa meu mundo caiu novamente. Novas informações, nova conclusão. O Bom dia Brasil dava mais detalhes do caso e entre esses detalha um depoimento da companheira ou esposa de Marielle. Não foi muito difícil ver a contradição, pois até a pouco a vereadora era namorada do traficante e, agora, na TV, sua companheira dava declarações. Ou o mundo está mais zuado que eu imaginei ou tinha alguma coisa errada aí. Seria esse um crime motivado pelo amor?
Em meio a esse tremendo bafo, novas informações davam conta de que as munições usadas no assassinato faziam parte de um lote de munições desviado da Polícia Federal durante o envio dessas pelos Correios e que o culpado por esse desvio (roubo) seria o escrivão.
Cara, primeiro que eu não fazia ideia que haviam escrivães de polícia que trabalhavam nos Correios e segundo que eu não entendia porque a Polícia Federal não tinha usado o Sedex para enviar as munições (pelo menos assim poderiam rastrear a encomenda). Mas parte do mistério foi logo esclarecido. O Chefe dos Correios disse que a informação dada pelo Chefe da Polícia Federal não procedia. O Chefe da Polícia Federal fez a egípcia e... Tudo certo. Apenas o tal escrivão ficou suspenso no ar.
Ainda no mesmo dia mais informações diziam que parte dessas munições foi usada em uma chacina em São Paulo e que em decorrência dessa chacina havia um policial militar preso.
Dada essas informações, nem amor, nem guerra entre facções. Marielle havia sido assassinada pela... Errou... Pela milícia, irmão, claro.
Como não havia pensado nisso antes? A milícia que queria tomar o morro dominado pelo CV que matou Marielle. Claro que os milicianos terão algum acerto com a PM de São Paulo que forneceu para eles munições roubadas da PF por um escrivão de polícia que trabalhava nos correios. É óbvio.
Mais óbvio que isso só o fato de que eu não devia ter dormido naquela aula, pois enquanto eu dormia a Polícia Federal começou a enviar lotes de munição pelos correios, escrivães de polícia também começaram a trabalhar nos correios e todas as corporações policiais dos Estados haviam se articulado e formado uma organização de cooperação a nível nacional para defender nossa vida, nossa liberdade, defender o país, manter a paz, a soberania e... Peraí, mas isso lembra alguma organização que já existe! Enfim, manter a paz, a soberania e nos livrar de pessoas como a Marielle e esse tipo de gente que se envolve com os direitos humanos.
Mas, como toda boa história, sempre aparece uma surpresa que muda tudo. Mais informações davam conta de que a favela de onde veio Marielle ficava na área de um batalhão da Polícia Militar conhecido, conforme disse o jornal da Globo, por ser o Batalhão de polícia que mais mata no Brasil. O que não é pouca coisa. Em outros veículos de informação li e assisti que a polícia brasileira, além de ser a que mais morre, também é a que mais mata e, dessa polícia, a que mata mais ainda, é a polícia do batalhão que atua na favela de onde veio Marielle.
Alguns noticiários informaram que Marielle, essa vereadora do PSOL que era envolvida com “essa gente dos direitos humanos”, atuava contra a violência e cobrava investigação pelas mortes em decorrência da violência, fossem essas vítimas cidadão comuns ou policiais. Que fizera recentemente denúncia a respeito de uma chacina ocorrida em uma favela no Rio e que integrava a comissão que acompanhava as ações do exército no processo de intervenção no Rio de Janeiro.
Cara, é muita informação. Daria para continuar essa história a cada fato novo que vem a tona diariamente e muda os rumos do veredicto, mas eu prefiro parar por aqui. Parar porque eu ainda não conheço Marielle e não terei mais a oportunidade de conhecer. Mas de uma coisa eu sei, enquanto fico aqui procurando o culpado por sua morte, Marielle continua morrendo. Assassinada pelas balas da ignorância, do preconceito, da omissão, da boçalidade. Guiadas telescopicamente pelas lentes de quem nos dá a narrativa, muda o rumo da prosa e nos leva a mais banal escuridão, ignorando os fatos fundamentais e “novelizando” a tragédia da vida. À procura de culpados, a narrativa imposta guiando nossa 9mm para nossa própria cara e, mais cedo ou mais tarde, ela nos acerta e seremos, todos nós, se não uma nova Marielle assassinada, um guarda assassinado onde ouvimos sempre “ah... esse aí de certo tinha envolvimento com o crime, tava devendo, era correria...”.
E, nessa história toda, eu ainda não sei quem é Marielle, mas tenho três certezas: Um: Não faço a menor ideia de quem puxou o gatilho; Dois: Junto com o banqueiro, com o empresário e com você, um dos culpados pelo assassinato da vereadora, seja lá quem ela for, sou eu; e Três: O que Maquiavel escreveu, há mais de 500 anos, ainda faz todo o sentido.