Sentença em primeira instância dada pelo TJ-SP em resposta a ação civil-pública da Defensoria e outras entidades reitera que poder de polícia é prerrogativa exclusiva do Estado, assim como todas as funções técnicas exercidas por trabalhadores no atendimento aos detentos. Documento deixa claro que terceirização é mais cara que o trabalho feito pelos servidores públicos, além de ser inconstitucional por desrespeitar Cartas Magnas brasileira e de São Paulo
por Giovanni Giocondo
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) anulou o edital de licitação da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), aberto em maio de 2019 para conceder à iniciativa privada a gestão compartilhada dos Centros de Detenção Provisória (CDPs) de Aguaí, Gália I e II e da Penitenciária de Registro. A sentença disponível neste link, foi proferida no último dia 20 de novembropela juíza Luiza Barros Rosa Verotti.
Em resposta a pedido de tutela de urgência feito pela Defensoria Pública do Estado, da Conectas Direitos Humanos, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e o Instituto Terra,Trabalho e Cidadania - ITTC, a magistrada decidiu que o edital deve ser anulado porque as pretensões da SAP de fazer a cogestão dessas unidades “revestem-se de verdadeiro caráter de substituição do papel dos agentes estatais da segurança”.
Como a decisão é em primeira instância, ainda cabe recurso por parte da Procuradoria-Geral do Estado(PGE), e o edital só deve ser suspenso em definitivo caso haja decisão nesse sentido em segundo grau.
Atentado contra a Constituição Federal
No documento, a juíza menciona que, de acordo com a Constituição Federal, o poder de polícia deve ser exercido exclusivamente pelo Estado, o que é reforçado pela aprovação, pelo Congresso Nacional, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 104/2019, que criou a Polícia Penal e incluiu este órgão no artigo 144 da Carga Magna e, consequentemente, no rol da segurança pública, tornando portanto indelegáveis as funções dos policiais penais a funcionários de empresas privadas.
“De acordo com o art. 4º à polícia penal incumbe realizar a segurança dos estabelecimentos prisionais, sendo que o ingresso em seus quadros deve se dar exclusivamente por meio de concurso público. Após a aprovação da emenda, verifica-se a inviabilidade de delegação de tais atribuições a entes privados”, reitera a magistrada.
Ainda conforme explicita o texto, embora no edital a secretaria tente dizer que o certame estabelece que os funcionários terceirizados só executariam “funções de apoio”, fica claro que “diante da característica do poder de polícia, assim como da prestação jurisdicional e garantia de direitos precípuos da execução penal (segurança, poder de punir e liberdade), se torna absolutamente inviável a delegação de tais tarefas à iniciativa privada”.
Na sentença, a juíza também aceita os argumentos da Defensoria e das demais entidades de que a delegação desses atos a particulares “geraria desequilíbrio ao princípio da isonomia, pois o Estado estaria permitindo a supremacia de determinados particulares sobre outros, renunciando ao monopólio da força que lhe é inerente”.
Estado democrático de direito em risco
“Vale dizer, pois, que a medida pretendida pela ré, além de ferir o princípio da igualdade entre os cidadãos, violaria o Estado Democrático de Direito, no qual o exercício da violência deve ser necessariamente monopolizado pelo Estado”, prossegue o texto.
No que se refere ao trabalho dos profissionais das chamadas “áreas técnicas”, que envolvem as atividades administrativas, de saúde e assistência social com atendimento aos detentos , a juíza contesta os argumentos da SAP porque estes trabalhadores têm acesso a informações confidenciais, que não poderiam ser legadas à iniciativa privada.
“Não é possível a contratação de profissionais privados para a prestação de assistência médica, psicológica, assistência social, entre outras atividades que compõem de forma direta e típica o poder punitivo estatal”, relata, com a seguinte justificativa:
“Tais profissionais são responsáveis pela elaboração de exames criminológicos, além de atuarem na execução da pena privativa de liberdade, garantindo a individualização do cumprimento da pena e fornecendo ao Poder Judiciário a judicialização da execução penal, de modo que suas atribuições não podem ser transferidas à iniciativa privada, sob pena de grave comprometimento do Estado Democrático de Direito”.
Para completar, a sentença demonstra que a tentativa de compartilhar a gestão das unidades prisionais atenta também contra a Constituição do Estado de São Paulo, que em seu artigo 143 afirma taxativamente que a legislação penitenciária estadual assegurará o respeito às regras mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tratamento de reclusos, também conhecida como “Regras de Mandela”.
A magistrada ainda observa a situação de penitenciárias terceirizadas em outros Estados brasileiros, como o Amazonas - alvo de massacres em 2017 e 2019 - para demonstrar que “não há nem mesmo garantias de que a chamada gestão compartilhada apresentaria melhoria das condições carcerárias. A bem da verdade, a experiência prática demonstra que o modelo de presídios privatizados piorou ainda mais as condições dos presos.”
Custos mais altos que o serviço público e prejuízo ao Estado
Para finalizar, a sentença também recorre a dados fornecidos pelo Estado para esclarecer que o modelo privado de gestão do sistema prisional é mais caro que o público, o que por si só também não justifica a mudança de modelo, até porque a própria Fazenda Pública - que tentava manter o edital aberto - confirmou que os custos nas novas unidades seriam até três vezes superior ao do sistema atual.
“Segundo a SAP, o valor gasto mensalmente por pessoa presa, no Estado de São Paulo, atualmente é de R$ 1.580,00. Segundo a Fazenda Pública, quando consideradas todas as despesas envolvidas, inclusive aquelas relativas ao gasto com pessoal, o Custo por Vaga do modelo de cogestão seria de R$ 3.033”. Mas há uma ressalva fundamental a ser feita, que fica escancarada na sentença.
Isso porque se fossem observados como base o menor valor orçado nos editais de licitações - que é o relativo ao CDP de Aguaí - o gasto mensal por pessoa presa seria de R$ 4.383,73, diminuindo-se para R$ 3.757,50 em caso de superlotação máxima. Se os valores já parecem altos, seriam ainda maiores porque neste montante “nem sequer estão previstos os gastos diretos da Administração Pública, inclusive para a manutenção de cargos ocupados por servidores estatais”, finaliza o texto.