Marc Souza

Agente penitenciário, escritor e Diretor do Sifuspesp
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Por Marc Souza - agente de segurança penitenciária, diretor de base do Sifuspesp e escritor

 

Este ano não foi fácil para os servidores do sistema prisional do estado de São Paulo. Se não bastasse a superpopulação carcerária que o funcionário é obrigado a enfrentar todos os dias, o déficit funcional, as ameaças de membros das facções criminosas, a violência assistida, as agressões sofridas (físicas e verbais), os assassinatos, a falta de uma política de valorização do servidor, a falta de uma assistência médico-psicológica e o descaso do estado quanto à política salarial que há mais de três anos não dá ao funcionário nem a reposição inflacionária, este ano o funcionários tiveram que conviver com o suicídio de muitos de seus colegas de classe.

Não sou especialista, mas, ouso dizer que há um surto de suicídios entre os profissionais do sistema prisional do estado de São Paulo. Muitos foram os profissionais que, no ano passado, nos deixaram de forma abrupta.

Profissionais que tiveram suas vidas ceifadas pelas próprias mãos, numa atitude de desespero e com certeza de dor insuportável, tão insuportável que os levaram a tomar tal atitude drástica, deixando para trás família, amigos e companheiros de trabalho.

O maior problema encontrado é a inércia do Estado ao tratar deste assunto.

Todos sabem que os funcionários do sistema prisional vivem um ambiente propício para problemas psicológicos e psiquiátricos, que são as maiores causas de suicídio. Afinal estes profissionais vivem diuturnamente pressionados, em ambientes totalmente estressantes e vítimas dos mais variados tipos de violência.

No entanto, mesmo com o alto índice de suicídios no último ano, o estado se cala. Não apresenta um programa concreto de prevenção ao suicídio, não fornece aos seus funcionários uma assistência psicológica ou médica psiquiátrica a fim de coibir e até erradicar casos como estes.

Há de se observar que, se analisarmos friamente, o Estado chega a fomentar indiretamente tais atos. Pois enquanto tivermos esta política carcerária precária, desestruturada e totalmente desorganizada que não cria um mínimo de condições de vida aos apenados, e, por conseguinte, que não dá um mínimo de condições de trabalho aos funcionários, casos como estes hão de se repetir.

Atitudes têm que ser tomadas, e se demanda tempo e dinheiro para reestruturar este sistema falido ao qual os funcionários do sistema penal estão sujeitos. Que sejam criados programas de apoio a estes profissionais que dão a vida pela sua profissão.

É imperativo que algo seja feito urgentemente, antes que mais vidas se percam. Antes que mais famílias sejam destruídas pela leniência de um Estado que joga os cordeiros aos lobos esperando que estes resolvam o problema que ele, o estado, não consegue resolver.  

 

Por Marc Souza - agente de segurança penitenciária, diretor de base do Sifuspesp e escritor

 

Uma das poucas profissões pelas quais os profissionais vivem 24 horas por dia é a profissão de agente penitenciário.

Primeiro, porque um agente penitenciário sempre tem que estar a postos para qualquer eventualidade que possa ocorrer no seu local de trabalho, o que faz com que o mesmo seja convocado a qualquer hora do dia ou da noite.

Segundo, porque não basta tirar o uniforme. Um agente penitenciário é agente penitenciário 24 horas por dia. O perigo de exercer a função de agente penitenciário não está somente nas 12 horas que o mesmo presta serviços dentro das unidades prisionais, onde é refém da angústia, do risco de trabalhar com centenas e até de milhares de presos. Mas, fora dos muros dos presídios o agente continua sendo refém da mesma angústia.

Para um agente penitenciário, o perigo sempre está à espreita, afinal ele também é refém fora do local de trabalho, seja no caminho para casa, nos bancos, no supermercado ou nos momentos de lazer com a família.

Ser agente penitenciário é colocar a vida em risco 24 horas por dia, 365 dias no ano. É viver se equilibrando na fina linha do destino onde de um lado está a vida e do outro...

Era um dia comum, um dia, como outro qualquer. De madrugada, ele sai para o trabalho, de onde retornará apenas no início da noite.

Antes de sair de casa, beija sua esposa e os filhos levemente, para não acordá-los. E parte.

Não caminha nem por uma quadra quando uma moto com duas pessoas passa devagar.

Ao ver os olhos do carona ele sente seu sangue gelar.

Não sabe o que pensar, tampouco tem noção do que fazer.

De repente um calafrio sobe pela sua espinha deixando eriçados todos os pelos do seu corpo. Seus batimentos cardíacos aumentam de tal maneira que parece que o seu coração irá sair pela boca.

Sabe que há algo errado, já sentiu isso antes, e a sensação não é boa, algo está para acontecer. Algo muito ruim.

Logo à frente, o motociclista retorna. Ao ver tal atitude ele pensa em correr, mas sabe que não tem para onde correr. Procura esconder o rosto.

São cinco da manhã. A rua está praticamente deserta, não há ninguém além dele e das pessoas da motocicleta. Ele sabe que, se tentar voltar para a casa, poderá colocar a vida dos seus entes queridos em risco, então resolve continuar o seu caminho. Como se nada de anormal estivesse acontecendo.

O motociclista passa por ele bem devagar. Por mais que tente evitar, a troca de olhares é evidente, e mais uma vez ele sente a espinha gelar.

Sem alternativas, o agente continua o seu caminho sem sequer olhar para trás.

Ele anda dez, vinte, trinta metros e tudo parece ter voltado ao normal,

Aos poucos ele vai se acalmando. Logo, seus batimentos cardíacos também vão desacelerando.

O pior já passou, pensa.

Aliviado, crê que tudo não passou de má impressão, do resultado de anos vivendo no limite do stress por ameaças e terrorismo psicológico dentro e fora do local de trabalho, por várias tragédias ocorridas com companheiros de trabalho que ficaram marcadas em sua memória.

Então, uma pessoa lhe chama pelo nome.

Ao virar-se, vê novamente aquele olhar, mas desta vez este olhar não lhe causa frio na espinha ou qualquer tipo de sensação pelo corpo.

Não há tempo, pois o agente é alvejado por vários tiros de forma fria e covarde. Acusado de pecados nunca realizados, condenado por crimes nunca cometidos.

Essa história não é ficção. Anualmente, vários profissionais do sistema prisional do país vivem esta situação e poucos sobrevivem para contar a história. A grande maioria é assassinada fria e brutalmente ao ser reconhecida como parte do quadro de funcionários do sistema penitenciário em qualquer lugar que estejam. Pessoas marcadas pelo simples fato de exercerem uma profissão.

Pessoas que brutalmente se transformam em mais uma nota no obituário, pelo simples fato de serem agentes penitenciários.


Marc Souza

Escritor

Diretor Sifuspesp

 

Por Marc Souza, Agente Penitenciário e Escritor - Diretor do Sifuspesp 

 

Naquele momento, um filme passou pela sua cabeça. Um filme, que, aparentemente, chegava ao fim.

É interessante que, em segundos, toda a sua vida foi passada a limpo. Suas alegrias e decepções. Seus medos e suas angústias.

De repente, um dos seus maiores medos estava se tornando realidade: Sair de casa para o trabalho, e, não retornar.

Foram anos de medo e angústia, anos orando, pedindo a Deus para que lhe protegesse, para que, lhe livrasse daquela situação que estava vivendo naquele momento.

O que fazer naquela situação? Entregar-se passivamente, tal qual um animal diante do seu algoz, ou lutar com todas as forças buscando meios de sobreviver diante daquela situação em que a morte, parecia-lhe, era iminente?

A rebelião estava instalada.

Os presos queriam que seus direitos fossem respeitados: Melhores condições para o cumprimento da pena; Fim da superpopulação carcerária; Agilidade nos julgamentos de processos e concessão de benefícios; Transferência para outras unidades prisionais.

Quanto a ele, estava ali, abandonado à própria sorte, jogado no interior de uma cela suja, sentindo-se um boi de piranha, sangrando até a morte. Pego de refém quando fora liberar os sentenciados para o banho de sol, fora ameaçado, humilhado, agredido. Muito agredido. Seu corpo doía tanto que imaginava que aquele seria o seu fim.

Vez ou outra, um sentenciado entrava na cela, e, com estiletes improvisados ameaçavam a sua vida. Passavam o estilete pelo seu pescoço como se fosse cortá-lo, ameaçavam estocadas, chutavam-no, batiam-no. O ódio que vira nos olhos daquelas pessoas deixava-o ainda mais desesperado.

Parecia que ele era o responsável por todas as mazelas que aquelas pessoas estavam vivendo. Era como se ele não quisesse, também, uma unidade prisional sem superlotação, uma unidade prisional com melhores condições de trabalho e sobrevivência aos sentenciados ali recolhidos. Era como se ele fosse o responsável pela morosidade do poder judiciário.

Ouvia do lado de fora da cela, gritos. O medo, era quase palpável, a tensão era insuportável.

Então, sem conseguir evitar, começou a imaginar como seria a sua morte, começou a imaginar a sua família sem ele. Sua esposa. Seu filho.

“Que merda” – pensou. “Por que passar por aquela situação? O que fizera para merecer aquilo tudo?” Sempre fizera o seu trabalho da melhor maneira possível. Sempre foi um exemplo de pessoa e profissional, e agora, estava ali, com a vida por um fio, sendo acusado e responsável, por algo que sequer poderia mudar. Naquele momento ele era a figura do Estado negligenciador. A figura de um sistema omisso, moroso às vezes inerte causador do caos penitenciário que estavam vivendo.

“Será que eles não vêem que também sou vítima desse caos” – pensou, e quase gritou aos quatro ventos, tamanho era o seu desespero. “Será que eles não vêem que eu também sou prejudicado, machucado, marcado por toda esta incapacidade do estado em lidar com esta situação”. “Será que eles não vêem que eu também estou adoecendo e morrendo diante de tamanha negligência”.

Ao fechar os olhos viu seu filho chorar. Chorar a perda do pai. Chorar a perda do seu herói. Então, chorou. Não por ele, mas, pelos seus. Chorou por sua família, sua esposa. Chorou pelo seu filho.

De repente várias pessoas entram na cela em que estava recolhido. Com um estilete artesanal no pescoço ele é retirado da cela, em meio a socos e chutes e amarrado de braços abertos junto à grade da cela como se fosse um escudo humano.

Então...

Então, ele ouve um barulho ensurdecedor seguido de gritos desespero antes de perder os sentidos.

As marcas que tem no corpo, tal qual as dores que sente, praticamente desaparece ao ver o sorriso do seu filho e da sua esposa. Tais marcas e dores não o preocupam mais.

O que de fato o preocupa, são as dores que sente na alma. Dores estas que talvez nunca hão de desaparecer.

Dias depois, ao voltar ao trabalho, nota que nada, nada mudou. E tudo está como antes. Tendo a certeza de que tudo o que viveu, poderá se repetir, e se repetir, e se repetir, e que só resta a ele orar e pedir a Deus para que quando se repetir, não se apresente de forma mais trágica.

 

Por Marc Souza, Agente Penitenciário e Escritor - Diretor do Sifuspesp

 

De repente estamos no nosso derradeiro dia. O último, então...
O que pensaremos? Do que lembraremos?
Dos dias felizes ou dos dias tristes?
O que sentiremos? Alegria? Tristeza? Realização? Decepção?
Será que neste dia teremos aquele sentimento de dever cumprido, ou veremos passar um filme em nossas cabeças onde tudo poderia ter sido diferente?
Será que, realmente, combatemos o bom combate?
Ou fugimos, nos escondemos, deixando o tempo passar, entregando aos outros as responsabilidades que seriam nossas?
Será que fizemos jus as dádivas que recebemos?
Será que fizemos a diferença?
Está semana foi trágica, de repente, a vida de alguns se esvaiu... Pessoas boas, pessoas de bem.
Uma tragédia levou verdadeiros líderes, pessoas que, de fato, fizeram a diferença.
Pessoas que não deixaram a vida passar, assistindo-a pelas janelas de suas casas.
Pessoas que lutaram a favor de uma causa, a favor de uma categoria, em prol de um sonho.
Com certeza em seus últimos momentos pensaram no bem que fizeram. Nas batalhas que venceram, e nas vidas que transformaram e que, ainda, hão de transformar.
Combateram o bom combate e venceram.
Fizeram das dádivas que receberam um sentido para a vida de muitos.
Que sejam exemplo hoje, amanhã e sempre, de que a vida só vale a pena, se for vivida em função de um ideal, a serviço de um sonho. Que a vida só tem sentido se vivermos não só para nós, mas, também, para os nossos irmãos.
Que no último segundo de nossas vidas sejamos como eles e pensemos:
Não foi em vão.
Que assim seja!